segunda-feira, 14 de junho de 2010

Mitos políticos do Brasil




Mitos políticos do Brasil
Publicado por João Mellão

Não há nada mais tedioso do que assistir a discursos políticos no Brasil. Invariavelmente, da mais revolucionária esquerda a mais reacionária direita, todos eles são calcados em princípios morais e éticos que, devidamente decodificados, em nada diferem da doutrina religiosa católica, em seus anjos e demônios, pecados e virtudes, infernos e paraísos. É compreensível que assim seja. A razão e sim o coração. Este só é atingido através dos mitos. E a mitologia disponível, de circulação livre e consensual, é justamente aquela que a Igreja nos ensinou.

As variações são muitas, os temas sempre os mesmos. A partir de uma análise superficial, poder-se-iam identificar ao menos os principais: “A luta do Bem contra o Mal”, “O Paraíso Perdido”, “Terra Prometida”, “A Volta do Messias”, “O Milagre da Multiplicação” e “O Povo Escolhido”.

A luta do bem contra o mal está presente no discurso de todos os partidos. Cada um arvora para si o monopólio da virtude, das boas intenções e da verdade. Os demais, ou são maculados (“seu passado desautoriza suas propostas”), ou agem de má-fé (“sua pregação é bela mas não é sincera”, ou estão simplesmente equivocados(“uma vez que Deus revelou a Verdade apenas a nós”). O “O Bem vencerá!”, pregam todos aos quatro ventos. O Bem, obviamente, possui uma única concessionária autorizada, que somos “nós”.

O “Paraíso Perdido” não falta em nenhuma preleção. O passado era melhor. Bons tempos aqueles em que cada um de nós tinha uma identidade própria, uma renda compatível com nossas necessidades, uma família bem estruturada, uma bela casa cercada de verde, uma vida totalmente feliz…. Apesar de todos nós acreditarmos piamente nisso, a comprovação desse fato é bastante duvidosa. Do passado guardamos apenas as boas lembranças. Na verdade nem nós éramos tão inocentes, nem a vida era tão feliz. A mortalidade infantil era múltiplas vezes maior do que hoje e a expectativa de vida era imensamente menor, não havia os confortos do mundo moderno, o trabalho era maus árduo… mas afinal, quem se lembra disso?

Perdemos o Paraíso, mas podemos voltar a ele! A “Terra prometida” existe, chame-se ela Cuba, Albânia, Alemanha ou Austrália. Há um mundo melhor, um horizonte perdido onde homens são livres, iguais e fraternos. Confiem em nós e os levaremos até lá. Em Canaã, em se plantando tudo dá. Os “sem-terra” terão terra, os “sem-teto” terão casa, os “sem-esposa” se casarão. Em Pasárgada, todos nós seremos amigos do Rei. E o monarca será um homem justo, ético, correto e amigo do povo.

Infelizmente, porém, nem todos caberão no paraíso. Ele é um privilégio do “Povo Escolhido”. Existe no mundo uma maioria de gente boa, pura altruísta e uma minoria de gente má, pecadora e egoísta. Os bons somos nós: eu, você, nossos amigos. Trabalhamos duro, honestamente, mas nunca crescemos porque uma minoria mal-intencionada faz de tudo para estragar a nossa sociedade. Quem é ela? Isso varia, conforme a ideologia; para as esquerdas é a burguesia, para as direitas são os comunistas, para os liberais são os burocratas, para os nazistas são os judeus. Temos que expulsar os mercadores do templo, extirpar o câncer que ameaça o corpo, a maçã podre que compromete o cesto! O mundo, sem os mais, os impuros, os infiéis, será, sem dúvida, melhor!

Os governantes alegam que não podem resolver nossos problemas porque não tem recursos. Mentira! Os recursos existem só que são mal aplicados. O sangue da plebe é sugado para alimentar o festim dos fariseus. O “Milagre da Multiplicação” seja de pães, creches, terra ou salário, é possível. Confie em nós! Só nós sabemos como fazê-lo!

Tudo isso é belo, mas quem liderará a transição, quem abrirá as águas do Mar Vermelho, quem nos guiará até a terra prometida? Nós lhe trazemos a boa nova! O Messias voltou! Um homem (ou mulher) sem pecados, justo, honesto, bom. Seu nome está escrito nas estrelas. Ele veio para redimir os pecados do mundo. Acredite, confie, tenha fé! Inscreva, em seu voto, o nome do salvador!

Este é em resumo, o discurso político praticado no Brasil. Analisemos o “evangelho” de cada um dos presidenciáveis. Decodifiquemos a retórica de cada um dos partidos políticos. Com maior ou menor paixão, em doses variáveis de ódio e rancor, recheado ou não de “embasamento” estatístico, científico ou histórico, este é o teor da totalidade das teses e propostas políticas apresentadas ao nosso povo.

Eu também, intimamente, aguardo um Messias. Só que ele, para me seduzir, terá de dizer coisas muito diferentes. Terá de reconhecer que o passado não foi nenhuma maravilha e que o futuro só será bom se todos suarem o rosto para isso. Haverá de ter a coragem de dizer que o mundo não se divide entre bons e maus, uma vez que cada um, legitimamente, luta apenas pelos seus interesses. Terá de proclamar que o “povo escolhido” é unicamente aquele que se escolhe. Haverá de reconhecer que os recursos realmente não existem; que os pães não se multiplicam por milagre, apenas se somam através do trabalho duro de cada um de nós. Não busco um salvador. No dia em que tivermos um governante sincero, racional e decente, todos nós poderemos nos salvar por conta própria.

Artigo publicado no jornal “O Estado de São Paulo” em abril de 1989.

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